Resquícios dos Andes na Amazônia

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Pesquisadores imaginam uma floresta contínua unindo a Cordilheira dos Andes à Amazônia

Pesquisadores imaginam uma floresta contínua unindo a Cordilheira dos Andes à Amazônia

Porto Velho, capital de Rondônia, hoje é muito quente e abafada, mas há 30 mil anos seu território provavelmente foi frio como a atual Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, a 3.500 quilômetros (km) de distância. A temperatura média anual deve ter sido de no máximo 18º Celsius (C), seis abaixo da média atual. Não havia gelo, que cobria vastas áreas ao norte e ao sul do planeta, mas a temperatura nos invernos devia chegar a 10ºC, o suficiente para fazer os atuais moradores do sudoeste da Amazônia brasileira se sentirem enregelados. Por meio de análises de pólen e dos isótopos (variações) de carbono e nitrogênio de sedimentos retirados de até 20 metros de profundidade, pesquisadores do Pará e de São Paulo concluíram que a vegetação também deve ter sido diferente. Além de espécies de árvores ainda hoje encontradas na região, a floresta abrigava outras, típicas de clima frio, que desapareceram à medida que o clima se tornou mais quente.

Alnus, um dos gêneros de árvores hoje extintos, marca com clareza as mudanças de clima e vegetação na região entre o norte de Rondônia e sul do Amazonas. “OAlnus só cresce em clima frio”, diz Marcelo Cohen, professor da Universidade Federal do Pará. Nesse estudo, ele identificou grãos de pólen de 65 grupos de árvores e plantas herbáceas retirados das amostras de sedimentos e acredita ter encontrado o primeiro registro de árvores de Alnus na Amazônia brasileira. Na América do Sul, árvores desse gênero são encontradas atualmente em regiões acima de 2 mil metros de altitude na cordilheira dos Andes, a pelo menos mil km de Porto Velho.

Por serem leves e minúsculos, com diâmetro variando de 10 a 40 micrômetros (1 micrômetro equivale à milésima parte do milímetro), os grãos de pólen podem ser transportados facilmente pelo vento ou pela água da chuva e dos rios. “Na região estudada”, diz Cohen, “o percentual de pólen de Alnus chegou a 11% do total encontrado, muito acima do esperado para a dispersão pelos rios ou vento”. Segundo ele, essa era uma indicação de que as populações de Alnus, vindas provavelmente dos Andes, devem ter encontrado condições favoráveis para seu crescimento nas terras baixas do oeste da Amazônia entre 40 mil e 20 mil anos, e depois se extinguido, à medida que o clima se tornou mais quente. Cohen identificou também pólen de outros gêneros de árvores de clima frio, como HedyosmumWeinmanniaPodocarpusIlex e Drymis, já identificados em outros pontos da Amazônia. Podocarpus, por exemplo, é um gênero de árvore do grupo das coníferas, como as araucárias, que ainda crescem no Sudeste e Sul do país.

Com base nesse trabalho, torna-se possível imaginar uma floresta contínua unindo os Andes à Amazônia, com as espécies de árvores de clima frio mais comuns a oeste e as de clima quente a leste, naquele período. “Havia uma mistura de espécies de árvores, formando uma floresta glacial, muito singular, como não existe mais hoje”, diz Cohen. À medida que o clima se tornava quente, as plantas que crescem apenas sob temperaturas mais baixas desapareceram, permitindo a expansão das mais adaptadas ao clima quente ou resistentes a variações climáticas intensas. Os pesquisadores encontraram também trechos de rios abandonados que formaram lagos, depois preenchidos por sedimentos e cobertos por vegetação herbácea, formando as savanas.

Florestas avançam
A identificação de muitas espécies arbóreas e de clima frio é também uma indicação de que o clima entre 40 mil e 30 mil anos era frio e úmido, e não frio e seco, como outros especialistas haviam indicado, segundo Luiz Carlos Pessenda, pesquisador no Centro de Energia Nuclear da Agricultura (Cena) da Universidade de São Paulo (USP). Pessenda obteve em 2001 as primeiras indicações de que o clima no sudoeste da Amazônia era úmido, provavelmente com chuvas regulares. Ele, com sua equipe, coletou amostras de solo em uma linha de 250 km entre Humaitá, sul do estado do Amazonas, e Porto Velho, e verificou o predomínio de plantas adaptadas à umidade. Estudos recentes com rochas de cavernas, realizados por outros grupos de São Paulo e de Minas Gerais, reforçam a hipótese de que o clima deve ter sido úmido e, portanto, chovido mais do que se pensava na região, principalmente entre 30 mil e 20 mil anos, quando o nível do mar devia estar 100 metros abaixo do atual e o litoral, a 100 km da atual linha de costa e a América do Sul e a Antártida, unidas por um istmo de gelo. Além disso, capas de gelo com até 3,5 km de espessura cobriam boa parte da América do Norte, Europa e Oceania.

Para Pessenda, esses resultados reforçam sua hipótese de que a umidade da floresta amazônica é que deve ter abastecido outra floresta híbrida, a da serra do Mar no estado de São Paulo, a quase 3 mil km de distância, cuja vegetação ele analisou em outros estudos. Há 30 mil anos, a serra do Mar era coberta por espécies de árvores de dois ecossistemas distintos, a mata atlântica e a mata de araucária. Depois, como na Amazônia, também ali sobreviveram apenas as resistentes a temperaturas mais elevadas e depois também desapareceram, cedendo espaço para os atuais campos.

Nos últimos 15 anos, Pessenda tem examinado pólen e a proporção entre as formas (isótopos) de carbono e nitrogênio de sedimentos de todo o país, além de ter formado uma coleção com cerca de 4.500 amostras de grãos de pólen que fundamentam trabalhos como o de Cohen, que fez o pós-doutorado em seu laboratório em 2011. Seus estudos revelam a constante transformação das florestas e a retração dos campos, que já foram mais amplos por todo o país, desde aproximadamente 4 mil anos. Segundo Pessenda, a maior parte das áreas hoje ainda ocupadas por campos em São Paulo e Rondônia, por exemplo, tende a desaparecer, mesmo sem a expansão das cidades e da agropecuária, e ser naturalmente ocupadas por florestas, em algumas dezenas de séculos, em resposta ao clima atual.

Revista Fapesp – n. 160